25/05/2015

"Desonra", de J. M. Coetzee

Editora Companhia das Letras
246 páginas
Tradução: José Rubens Siqueira
Sinopse do livro aqui.

1. John Maxwell Coetzee nasceu na África do Sul, em 1940, e desde 2006 vive em Adelaide, na Austrália, adotando nacionalidade australiana. Um homem recluso, que se move nas margens da esquerda e que combate a crueldade contra os animais. Ele é o tipo de pessoa que saiu de seu país, no entanto, o país não saiu dele. Preocupado com os problemas sociais da África do Sul, ele sempre tenta passar a realidade desse país em seus livros. Sim, este é Coetzee. Dentre tantos prêmios, foi consagrado com o Nobel de Literatura em 2003. "Desonra" é considerado o ápice da sua carreira, embora há críticos que consideram toda a sua produção literária uma grande obra prima.

2. Não é para menos. "Desonra" é um livro sublime, no entanto, me incomodou profundamente. Aliás, uma sensação desagradável me acompanhou por um bom tempo mesmo após o término do livro. "Desonra" nos apresenta o professor da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul), David Lurie, um homem de 52 anos, autor de três livros , todos lançados sem sucesso. David passou por dois casamentos e se divorciou nos dois, sendo que do primeiro casamento nasceu sua única filha, Lucy. É um homem mulherengo, promíscuo e cínico, que se considera mais velho do que realmente é e que se envolve com uma de suas alunas, Melanie Isaacs, de 20 anos. Melanie é o seu céu e o seu inferno.

3. Tive a sensação que a relação entre Melanie e David é muito forçada por este último. Aliás, com a justificativa de que "a beleza de uma mulher não é só dela. É parte do dote que ela traz ao mundo. Ela tem o dever de repartir com os outros", ele força uma relação sexual com a jovem, que a nossa ver seria considerado um estupro, mas na opinião de David "estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado" (p. 33). E aí nos indagamos: será que esse "ponto de vista" seria resultante do fato de ele ser branco e ela, negra? Quando os pais da jovem descobrem a relação, um processo administrativo é instaurado, David é "julgado" por um conselho nada imparcial e então o protagonista opta por deixar a Universidade e se refugiar na casa - ou, como ele chama, na fazenda - da filha, em Salem, no interior do país.

4. A partir desse momento, passamos a ter contato com os problemas sociais que a África do Sul ainda enfrenta no pós-apartheid. Infelizmente, o fim do regime de apartheid não representou o fim da pobreza, violência do país e segregação racial e econômica do país. Ou seja, os brancos continuam sendo economicamente mais poderosos que os negros. Sabemos que aos poucos, uma classe negra de "novos ricos" está emergindo no país, mas num ritmo muito lento. Portanto, o país conseguiu derrubar as barreiras legais de segregação racial, porém, não derrubou a barreira social.

5. David, ao se refugiar no interior da África do Sul, tem contato com o que há de pior no país: disputa de terras, violência contra as mulheres e o descaso do poder público com os animais. Como bem disse no início dessa resenha, Coetzee tem uma grande preocupação com os animais e tal preocupação se reflete muito nos seus escritos. Isso é bem evidente em "Desonra": "Os cachorros são levados à clínica porque são indesejados: porque somos demais. É aí que ele entra em suas vidas. Pode não ser seu salvador, aquele para quem não são excessivos, mas está preparado para cuidar deles, uma vez que são incapazes de cuidar de si mesmos, uma vez que até Bev Shaw lavou as mãos do destino deles" (p. 166). Além disso, percebemos que os animais são utilizados muitas vezes como metáforas, para descrever a vida de muitos seres humanos que sofrem naquele país.

6. Percebemos que toda a vida de David entra em desgraça após seu fatídico envolvimento com sua aluna. É como se ele tivesse "pagando por seus pecados". Na verdade, frise-se neste ponto que a tradução do título do livro seria "Desgraça" (título original "Disgrace"), porém o tradutor José Rubens Siqueira preferiu "Desonra" a fim de evitar conotações religiosas. Mas, observamos no decorrer da leitura que a palavra "desgraça" se faz muito presente no enredo.

7. Em que pese a violência sofrida por Lucy ter sido descrita de uma forma muito sutil, onde percebemos nas entrelinhas o que ocorreu, para mim foi algo muito forte. Aqui, mais uma vez, o escritor retrata uma triste realidade social: a África do Sul é recordista mundial de casos de estupro (a cada 34 segundos, faz-se uma vítima). E essa realidade era e continua sendo silenciada pela própria sociedade e o poder público. Por mais que o quadro esteja mudando, constatamos que ainda é vergonhoso para uma mulher sul-africana denunciar às autoridades policias tal violência. Há vários e vários momentos que eu fiquei indignada com a filha de David, por ela aceitar a violência sofrida e suas consequências. Mas, para que a gente entenda tal atitude, é essencial que deixemos o nosso olhar e nos familiarizemos com o contexto daquele país. "Você quer saber por que eu não fiz uma determinada queixa na polícia. Vou contar por quê, contanto que você prometa não puxar o assunto outra vez. O motivo é que, de minha parte, o que aconteceu comigo é uma questão absolutamente particular. Em outro tempo, outro lugar, poderia ser considerado uma questão pública. Mas, aqui, agora, não é. É coisa minha, só minha" (p. 129).

8. O livro de Coetzee toca diretamente nos sérios problemas sociais vivenciados - ainda - na África do Sul. É uma espécie de denúncia literária. O casamento de Lucy com o seu vizinho negro, Petrus, é uma espécie da tapa na cara de David e do leitor. Desde 1998, a justiça daquele país passou a reconhecer os casamentos poligâmicos realizados de acordo com as tradições africanas, com o único objetivo de proteger o direito das mulheres e crianças em relação à propriedade. Lucy esclarece bem esse contexto na narrativa: "Não acho que você vá entender, David. Petruz não está me oferecendo um casamento da igreja e depois uma lua de mel na Wild Coast. Está me oferecendo uma aliança, um acordo. Eu contribuo com a terra, em troca ele me deixa ficar debaixo da asa dele. Senão, e é isso que ele quer que eu entenda, vou estar sem proteção; é um jogo limpo" (p. 229).

9. O interessante é observarmos, no decorrer da narrativa, a dificuldade de David de entender essa realidade social. Talvez, por ter vivido em outros países e por ter presenciado realidades mais democráticas, ele não vê o que ocorre com ele como sendo um problema social, mas como uma consequência negativa fruto de seu envolvimento com sua aluna, como se ele estivesse "pagando por seus pecados". E no fim, ele simplesmente desiste. Desiste do cachorro que tinha sido seu companheiro por um tempo, desiste de convencer sua filha das suas opiniões, desiste de mudar a realidade de quem convive, desiste de sua ex aluna, desiste de dar aulas... "Ele tem a sensação de que, dentro dele, um órgão vital foi ferido, comprometido, talvez seu coração. Pela primeira vez, tem uma amostra de como será ser velho, cansado até os ossos, sem esperança, sem desejos, indiferente ao futuro. Largado numa cadeira de plástico, em meio ao fedor das penas de galinha e maças podres, ele sente seu interesse pelo mundo escoando de dentro dele, gota a gota. Pode levar semanas, pode levar meses até secar inteiramente, mas está secando. Quando isso terminar, ele será como uma casca de mosca numa teia de aranha, quebradiço ao contato, mais leve que uma casca de arroz, pronto para sair flutuando" (p. 124).

10. Coetzee é direto, claro, objetivo. Não mede esforços, não enfeita situações. Vai direto ao ponto. Sou da opinião de que seria um grande erro interpretarmos "Desonra" com um cunho religioso, moralista, por mais que percebamos que o próprio David interpreta dessa forma. Aliás, o próprio tradutor teve essa preocupação ao traduzir o título. Não, aqui trata essencialmente de uma narrativa que denuncia os problemas sociais de um país. Coetzee foi extremamente feliz com essa obra.

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